sexta-feira, 29 de junho de 2007

Feijoada de Feira


Dois amigos, um paulista e um carioca, estando de passagem por Feira de Santana, na Bahia, resolvem parar para almoçar.
— O que vamos comer? – perguntou o paulista.
— Vamos ao cardápio, ora! – disse o carioca.
—Bode assado, não. Frango assado comemos ontem. Maniçoba, não conheço...
— Que tal uma feijoada? – indagou o paulista.
— Tudo bem! Gosto de feijoada! Mas... vem acompanhado de quê???
— Ah, acompanha arroz, salada.
— E o feijão, cadê?
Preocupados, chamam a garçonete para tirar a dúvida:
Ela responde:
— Ô sinhôôô, é feijoada!
SANTOS, J.R. & ANDRADE, H.O.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

madrugada de inverno

Dilúvio - Francis Danby, 1840 Tate Art Gallery, London

O vento forte se afirma rasgando as roupas no varal da cidade, a chuva confirma a chegada, o ar frio é seu companheiro de tantas e longas ventanias, e eu? as goteiras começam a respingar fazendo um pequeno barulho na vidraça, parece grão de milhos semeados no telhado das casas, e eu?, lá fora, a poesia do silêncio tenta expulsar os ruídos do respingar da água insossa, solúvel, insana, e eu?, o vento busca fazer-se ouvido no meio da tempestade de gotas, a água jorra por entre as ruas delgadas da cidade obscura e segue, e eu?, o sono se foi - levado pela calada da noite, e junto se foi a pureza das cercas e muros das casas das ruas e centros urbanos da vida, e eu?, eu vou pedir a chuva pra que me lave a sujeira humana, mais uma vez.
jr

terça-feira, 19 de junho de 2007

Colírio do mês



Miragem

Vejo teu corpo desenhado
Submerso no lençol
Como a estátua de um deus
E não mais és meu
Sobre o teu ombro guardei
Meus beijos, meus sonhos
Meus risos e suspiros
Desatino, enganos meus?
Ontem mesmo, à noite
Entre meus seios sedentos
Semeaste alento
Em meus músculos suaves
Enterraste o desejo
Hoje sei:
Não mais és meu
E em teus olhos
Amanhecidos
Não mais me vejo

Pensamentos vãos

Vagando vão
Visitar a cada porto-ilusão
Para além de um dia
Vida súbita
Renascente
Em dúvidas
São os versos pagãos
Consolo sublime
Despertar com palavras doces
Ressonar em lembranças lúgubres
Como ondas golpeiam a praia
Pensamentos vãos
Vem e vão

Ivana Patrícia Lima de Oliveira (1981) é natural de Feira de Santana, BA. Cursa graduação em Letras (Português/Espanhol) pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Desenvolve ensino de língua espanhola para estudantes de rede pública de ensino em Feira de Santana através do Projeto Portal/Núcleo de Estudos Canadenses e leciona esta mesma língua para crianças de educação infantil em escola privada em Feira de Santana. A amante da literatura costuma escrever contos e poesia sempre nas duas línguas pelas quais se diz apaixonada.

Palavras e Colirius
Quando ocorreu seu primeiro contato com a leitura?

Ivana Oliveira
Aos seis anos de idade tive uma experiência bem marcante. Pode não ter sido a primeira, mas foi a primeira significativa. Eu fiz uma malcriaçãozinha e comecei a gritar que queria morrer, minha mãe me colocou de castigo no quarto e me deu uma Bíblia infantil toda ilustrada. Mandou ler o capítulo em que Jesus dizia "deixai vir a mim as criancinhas porque delas é o reino dos céus". Meu Deus, quanta contradição! - pensei depois de ouvir um baita sermão sobre “é pecado querer morrer'”. Ela me vinha logo com Cristo dizendo "deixai vir a mim as criancinhas...". Mas logo um outro capítulo me chamou a atenção: era a parábola do pobre Lázaro. Se tomarmos a sério a situação, veremos que o gosto pela leitura nasceu de um castigo pelo desejo de morte. E apesar de todo o esforço da minha mãe, eu não me tornei uma religiosa, porém a leitura me conquistou desde o momento do castigo que acabou virando um presente...

PC
Qual a importância da leitura para sua vida pessoal, intelectual, profissional?

IO
É muito mais de que pregam algumas campanhas. A leitura não significa apenas um meio de adquirir conhecimentos para o mercado de trabalho e nem é tão somente "uma viagem"... Hoje eu compreendo muito melhor a função da leitura em minha vida, a consciência de que o leitor não é um mero “viajante”. Ele pode ser um "co-autor". Isso me faz perceber que a leitura cumpre o papel de provocar o meu lado criativo, intuitivo, dedutivo, e isso é muito mais do que preencher uma lacuna em minha vida. É dar a ela o que só mesmo os seres dotados de racionalidade são capazes de compreender e de necessitar. Já que se fala em vida profissional, o fato de ser professora dispensa comentários sobre a importância da leitura, verdade?

PC Quais escritores você mantém na cabeceira da cama?

IO Machado de Assis, Clarice Lispector, Julio Cortázar, Antônio Carlos Viana, Octavio Paz, Pablo Neruda, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Castro Alves, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, João Ubaldo Ribeiro, Cecília Meireles, entre outros.

PC
Por que você escreve?

IO
Acredito que é pelo mesmo motivo pelo qual as pessoas desejam ter filhos, eu, como disse Bras Cubas "não transmiti a nenhuma criatura o legado da miséria humana", então sigo escrevendo... Perdão! Foi apenas uma tentativa de dar uma resposta espirituosa. A verdade é que para escritores de pequeno porte, não cabe tamanha vaidade. No fundo o que me impulsiona a escrever é uma necessidade de recriar o mundo tal como o sentimos: através da fragilidade das palavras, por puro deleite. Antes eu queimava tudo o que escrevia e nunca mostrava a ninguém, até que um dia mostrei uns poemas a um professor e ele me encorajou a compartilhar o que escrevia com outras pessoas.

PC
Você tem algum propósito com a prática da escrita literária para o futuro?

Não sei se há "grandes propósitos", não tenho grandes pretensões quanto a isso. Apenas escrevo quando tenho vontade Se um dia eu publicar um livro será por conseqüência de algo que aconteceu naturalmente. Não quero planejar algo que deve nascer espontaneamente.

domingo, 17 de junho de 2007

História do sabiá

Minha terra tem gaiolas onde prendem sabiás. Não existem em nenhum lugar do mundo pássaros tão dóceis. Quando querem prender os sabiás daqui, basta abrirem as portas dos alçapões, e todos entram sem fazer cara feia.

Os sabiás de minha terra só gorjeiam em português, não lhes ensinaram a gorjear em inglês, nem em europês. Mas quando abrem seus bicos deixa qualquer gavião de boca aberta.

Conheci outro dia um sabiá que andava pra baixo e pra cima de BMW. Ele me disse: "Comprei esta palmeira vendendo pó; sabiá não cheira, mermão, sabiá economiza" – acreditei sem questioná-lo.

Os sabiás de minha terra não morrem nunca porque são, antes de tudo, uns fortes. Outro dia acertaram um tiro no meio do peito de um sabiazinho que bicava uma melancia podre no mercado. Este, por sua vez, tomou um chá de cadeira nos corredores do Instituto Médico Legal por sete dias e voltou ao paraíso, sua terra natal, sã e salvo.

Ah, minha terra tem sabiás que se casam, põem ovos, produzem filhotes e ainda dividem seus ninhos que ficam debaixo de viadutos com outras famílias de sabiás. Todos vivem felizes para sempre...

Aqui em minha terra há, porém, um probleminha: existem gaviões, urubus, corujas, águias, falcões e corvos, mas até agora não conseguiram construir gaiolas para eles.
jr

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Conto: Chateando

mulherNight (reservado) fala para ower-12: oi!
ower-12 fala para mulherNight: sim!
mulherNight (reservado) fala para ower-12: homem ou mulher
— (silêncio)
— (silêncio)
— (silêncio)
— h
— está ocupado?
— um pouco
— o que procuras aqui?
— (silêncio)...
­— oooiii
— passar o tempo, to sem sono
— tudo bem, não quer conversar!
— fale, to aqui
— tc de onde?
— Sampa. E vc?
— Sou de Recife. Pensei q vc fosse mineiro.
— P q?
— Fala pouco.
— ...
— E vc, casado ou solteiro?
— solteiro
— namorando?
— ...
— Oooooooiii, te fiz uma pergunta!
— Estou sozinho esses tempos. E vc?
— Só também
— Tem irmã, irmãos
— Um irmão
— Me fale dele
— Ah, falar o quê...? mora em são jose dos campos
— ... sei. É relativamente perto
— Faz três anos q foi. Disse que ia tentar a vida
— ... sei
— Por que não tem ninguém?
— Quem? eu?
— Sei lá...não sei dizer
— Não é bom ficar so...depois o tempo vai passando, a gente envelhece...
— Vc disse q tá sozinha
— eh, mas é porque quero
— ...sei
— Sabe o quê?
— Nada...falei por falar
— Vc é de onde?
— ????
— Já disse: sampa, SP, eskceu?
— Ah, sim...
— Acho q to com sono
— E seus pais?
— Q tem meus pais?
— Moram com vc?
— Mais ou menos
— Como mais ou mensos?
— Eles são separados
— Sei!
— Sabe o q?
— Nada...so pensei
— Pensou em q?
— Em nada...vamos falar de nós?
— Sobre o q?
— Tem religião?
— Naum!
— Nooossa q naum bravo!
— ???
— Oi
— Oi
— Vc não respondeu...
— Não tenho religião
— Posso te fazer uma pergunta
— Simmm
— Vc é gay?
— Que tem a ver isso com religião?
— Nada...não perguntei sobre religião
— Perguntou
— Não perguntei
— Perguntou sim
— Não perguntei não
— Leia então
— ta, tudo bem...agora responda...
— fico com meninas tmb
— entendi.
— O q???
— Nada...falei por falar.
— ...
— Vc tem quantos anos?
— 16
— O quê???
— Q foi?
— Pensei q tivesse mais
— E vc?
— 39
— Sssssssssssss
— Vc tá usando drogas?
— Não, p q?
— É usuário
— xeiro de vez enquand
— Cuidado com a saúde
— Eu sei, to cuidano
— ...
— Tenho q ir, tá tard
— Ta, te cuida, ta?
— Ta
— Olha, entre no site
— Q site?
— Este q vou enviar
— Manda
http://www.sni.org.br/
— Valeu. Vai ficar aí?
— So um pouco...

mulherNight (reservado) fala para casado40Pe oi, é de recife?
casado40Pe fala para mulherNight: volto já
jr

terça-feira, 12 de junho de 2007

Conto: Separação

O pai, a mãe, o filho... a separação. Chega a hora.
— Pai, pai. Fala comigo, pai.
O pai chora. A dor, o soluço entalado na garganta. O silencio é o alvo. A angústia se revela no vermelho que jorra entre os três. A cena segue lenta e sombria em frente ao cais.
— Pai, meu pai? Responde, pai.
O silêncio persiste após o chamado. Tudo cala, só a dor é que persiste.
O pai tenta conter as lágrimas que ameaçam gotejar em meio à agonia. Não consegue, e sussurra:
— Vá...vai, meu filho. Eu volto. Cuide de sua mãe, tá?
— Não, você não pode me deixar. Não me deixe, pai. Nós só temos você. Você é tudo pra nós.
Abraço, dor, lágrimas...grito, ódio, amor, dor, dor. O pai, enfim, é levado. O filho chora. O filho tenta escapar. Alguém o puxa, alguém o segura, alguém o leva. O pai vai ao longe, olhando pra frente, olhando trás, olhando, olhando...
O menino grita:
— Eu quero ir, ele é meu pai, me deixem ir — Ninguém o escuta.
O enfermeiro, o médico, o militar. Todos de branco, no branco do azul cinzento do céu e mar.
O filho chama, implora, quase desfalece. Mas o pai não ouve. Apenas levanta a mão lentamente no infinito.
A mãe abraça o filho. Tenta conter as últimas gotas, mas chora ao assistir ao conflito entre o amor e o ódio vivido pela criança. Ambos voltam pra casa.
À noite, a mãe cheira as rosas que encontra em cima da cama, e chora. Tenta disfarçar a tristeza. O menino quebra o pequeno navio que o pai lhe deu no aniversário de cinco anos. A mãe reclama, mas entende.
Ambos ajoelham-se e rezam e agradecem e benzem-se e beijam a fotografia do pai... Os dois se deitam, não conseguem dormir. O menino abraça a foto e pergunta:
— Mãe, quando é que a guerra acaba?
A mãe finge dormir... O menino não insiste e se entrega ao sono, cansado dos óbices da vida.
jr

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Poesia: Metáforas da voz


A Jucelina Santos

Ouço vozes, sussurros, sonidos.
Ouço zumbidos no silêncio da maré
Eis o acústico invasor de meus ouvidos
Eis o gemido ofegante de mulher.

Talvez triste fosse o meu semblante.
E de tão triste não pudesse te sentir,
Tua voz doce dir-me-ia num instante:
“Traga-me a flauta, senhor. Venha-me ouvir”.

Mas é metáfora? É volúpia? É miragem?
Sinto tua boca me fazendo enfurecer
Logo penso: É figura de linguagem.
Vejo uma imagem que me faz amanhecer.

Percebo a luz que se completa n’alvorada,
Que se desfaz ao percorrer o longo dia.
Canta-me agora: “sou outrora, sou estrada...
Apaixonada, faço amor com melodia”.



Crônica: Um brinde ao Latim

Por Jocenilson Ribeiro

A teoria de Lavoisier, embora voltada para a transformação da matéria, pode ser relacionada à linguagem humana, e isso se evidencia especificamente quando analisamos o processo evolutivo de uma dada língua. Isso porque ainda que caia em desuso, uma língua não morre jamais. Ela estará sempre corporificada nas suas descendentes ou ainda usada puramente à revelia da percepção das pessoas.

Somos usuários de um idioma cujas raízes estão num passado que se faz, mais do que supomos, presente. Pensemos no Latim, da qual a língua portuguesa é oriunda.

Convivemos diariamente com palavras e expressões tão fortemente incorporadas ao idioma que uma dona de casa, por exemplo, ao optar pelo fósforo Fiat lux — obviamente por ser mais barato — nem imagina que aquela marca está escrita em latim e significa "faça luz". Da mesma forma, ao comprarmos um Acqua brasilis numa loja de perfumes, estaremos, com certeza, optando por um cheiro amadeirado e forte, pensando muito mais na conseqüência sedutora daquela fragrância do que na raiz latina deste nome: água do Brasil. A saber: brasil é nome de árvore já conhecida há séculos pelos europeus.

Nas mais diferentes situações do nosso cotidiano, desde a mesa de um bar, numa tarde de domingo, tomando uma cerveja Primus, depois de uma aula de revisão no Curso Millenium, estamos convivendo intimamente com o latim. E por falar em intimidade, há uma situação que se não for metáfora é loucura: o preservativo Olla. Todos sabemos da necessidade dele, mas isso nos causou um certo espanto quando constatamos que Olla significa panela, marmita. É... de fato, faz sentido a relação. Definitivamente, um preservativo com uma acepção de recipiente para armazenar alimento é uma metáfora! Não esqueçamos que Amon e Eros são também nomes de preservativos, cujos significados estão diretamente relacionados ao deus da força criadora da vida e ao deus do amor sexual, respectivamente.

Já que estamos nesse terreno amoroso, com ou sem preservativo, uma mulher moderna não pode prescindir do planejamento familiar, e aí entra em cena o Femina, anticoncepcional que significa fêmea, mulher.

Na verdade, seriam incontáveis os exemplos que poderíamos suscitar aqui: é Fiat, marca de carro; Lux, sabonete; Nivea, linha de produtos para beleza; enfim, há, de fato, muitas palavras que, assim como preconizou Lavoisier com sua teoria sobre a constituição da matéria, se transformaram e outras e muitas outras que, na contramão desta teoria, estão vivas e fortes em nosso cotidiano.

Comemoremos, pois, a longevidade da língua latina; propomos um brinde, saboreemos um conhaque Natu Nobilis, afinal ele é nascido para os nobres, portanto, é nascido para nós.
(Texto elaborado com a colaboração de Adriana Sanatana, Ana Maria Portela, Bruna Leão, Cícera Cerqueira, Joedson Teles, Nayhara Santana, Renata Pereira e Thiago Silva, na disciplina Língua Latina I, ministrada pela professora Valéria Ribeiro-UEFS, 2005).

Conto: Projeto de vida

Por Jocenilson Ribeiro
Ela cruzou o calçadão numa rapidez implacável e seguiu rumo à escadaria da Matriz. Estava atrasada mais uma vez. A professora de piano odiava quando tinha que repetir as informações do início da aula para os alunos retardatários. Por que suas aulas tinham que terminar tão tarde?

Outro dia, depois da aula de conversação em inglês, ela teve a sensação de que estava sendo seguida quando resolveu passar na casa da professora de piano. Mas, só teve mesmo a sensação. Ainda era cedo. As beatas desciam as escadarias da Matriz, com seus passos pensados, pesados.

“Sagrado Coração de Jesus, como é bela a juventude!” — disse uma delas ao vê-la subindo as escadarias às pressas.

Corria. Não porque estava atrasada, mas porque precisava intensificar o ritmo dos ensaios. Faltavam-lhe pouco mais de dois meses para tocar no exterior. Era um sonho: Itália, Roma.

“Filha, vê se não chega tarde hoje, essa professora de piano está te escravizando. Olha o estado destes dedos!”.

“Eu quero muito tocar, vó; quero viver disso, esse é o meu projeto de vida. Quando conhecer meu pai, quero que ele orgulhe-se de mim”.

“Já te disse que teu pai não valia nada. Nunca quis saber de tua existência”.

“Será mesmo, vó?” — perguntava batendo a porta e levando consigo a saliva seca que lhe travava a garganta. Não chorava mais, também havia tempo que não sorria, a menos que a professora de piano a elogiasse uma vez ou outra.

Queria muito que seu pai tivesse no concerto em Roma. Mas não tinha pai. Ou tinha?

“Teu avô é o teu pai”, dizia a avó. “Ele é que paga as contas, paga o colégio, a aula de piano, o curso de inglês... coloca pão na mesa”.

“...!”

“Teu avô é aposentado pela Marinha, ganha bem” — concluía a avó diplomaticamente.

E ela, quando se sentia disposta a responder, gritava: “Não é dinheiro que procuro, vó”.

Doze anos e um talento digital inquestionável. Tocava Mozart, Beethoven, Villa-Lobos... Este último parecia-lhe soprar os cabelos, quando ela viajava em suas sinfonias. Uma menina vestida de mulher. Uma mulher que vislumbrava uma jovialidade ainda um tanto infantil. Uma mulher que inconscientemente despertava os sentidos dos ragazzi, e dos marmanjos que não mais a viam como uma criança.

Agora, mais do que a sensação de ser seguida, ela tinha a certeza de estar sendo olhada, vigiada, despida, tocada por aranhas peludas, unhas de gaviões, dentes de pit bulls.

Quantas subidas e descidas por aquelas escadarias da Matriz. Quantas idas e vindas por cujos caminhos seu projeto de vida era traçado. A mãe, ela já não esperava. Sabia que a morte lhe tinha levado a vida na noite do parto. E o pai, sua maior tristeza, quem seria? Por onde andava?

O concerto estava próximo. O passaporte, a autorização do juizado, as passagens. A da professora de piano e a sua. O pai não iria, não tinha pai para ir. Queria vencer, orgulhar-se, mesmo que para isso lhe custasse o sangue que corria por entre os dedos.

A véspera da viagem, o último ensaio no Brasil. A volta para casa naquela noite, o cansaço, os dedos enrijecidos, as escadarias molhadas. O céu tocando a cruz no alto da Matriz, agora menos iluminado. O rio Una cortando a cidade com sua monotonia e os barcos encalhados lá ao longe.

O vento frio vindo do calçadão, e uma voz rouca metralhando seu tímpano como um piano desafinado que ingere o silêncio das ruas:

“Pare!”.

“Por favor”, disse a menina arriscando um grito.

“Grite e verá esse corpo rolar pelas escadas”

“Sou apenas uma menina, me solte, por favor!”, falou chorando.

“Uma boa menina não morre numa escadaria, não é mesmo?”, disse imobilizando-a.

Tentou escapar, atitude em vão. A barba grisalha ferindo o pescoço da menina, que sentia a boca sufocada por mãos–aranhas; sentia os pequenos seios rasgados por unhas de gaviões; via as roupas devoradas por dentes de pit bulls. Seu corpo puro, virgem. Sentia-o pressionado por aquela massa corpórea enorme e asquerosa, no patamar molhado, sujo, fétido. Seu sexo já não era sexo, mas sangue que se misturava na água da chuva.

As luzes lá embaixo no pé da escadaria quase se apagando, quase se acendendo, apagando, acendendo, acendendo... e o branco hospitalar — sem voz de piano — quinze dias depois do concerto de Roma.

O projeto de vida? Ah!... foi levado por aquele homem, cujo cadáver amanhecera pendurado na grade da Igreja Matriz.

Conto: Proposta em comício

Que vergonha, dizia ela sempre que se lembrava do que outrora lhe havia acontecido. Nunca iria esquecer a situação a qual fora "forçada" a enfrentar. Não estava arrependida, nunca esteve, mas confessa que, se fosse hoje, jamais faria o mesmo.

Chamava-se Deolina. Maria Deolina do Perpétuo Socorro. Nascera e crescera na pequena fazenda onde seus pais trabalhavam com os roçados de milho e mandioca. Viviam muito longe da cidade. Fora apenas duas vezes: a primeira, aos doze anos, quando seu pai a levou para registrá-la; a segunda, aos vinte, quando precisou ir ao posto de saúde extrair um dente, que lhe tirara algumas noites de sono.

Aprendeu desde cedo os ofícios da roça. A enxada, dizia ser seu lápis; a terra, seu livro. Nunca fora a escola quando menina. Depois de moça, sentia vergonha sentar-se no meio das crianças, sem saber decifrar uma letra do alfabeto. Mesmo que quisesse, não poderia: quem riria ajudar o pai no cultivo da mandioca, do feijão, da batata? Quem cuidaria dos afazeres domésticos, principalmente, depois que perdeu a mãe, vítima de uma picada de cobra?

Seu pai não iria permitir que deixasse as atividades do campo pelos livros. Acreditava que os estudos iriam afastá-la dele, mais cedo ou mais tarde. Tinha exemplo: dizia que a filha de seu fulano fugira com um colega e nunca mais deu notícia; que a filha de seu beltrano e a de seu sicrano haviam ficado grávidas dos rapazes da cidade logo após terem ido para o ginásio. E foram rejeitadas. Não queria isso para sua filha. Queria que ela se casasse logo, e com um pretendente de respeito, homem do campo, de fibra... Não teria problemas se não fosse rico, mas que fosse, ao menos, trabalhador, honesto...

Aos vinte e seis, Deolina não havia ainda arranjado um bom parceiro para constituir sua família. Surgiam alguns pretendentes. Namorava um por uns tempos, outro em outras ocasiões, mas acreditava que todos os homens eram iguais. Para ela, mais tarde acabariam por rejeitá-la após abusarem de sua boa vontade. Mas não perdurou com esta tese por muito tempo.

Os anos passavam. Os pretendentes, aos poucos, iam desaparecendo. As cobranças do pai, das tias, dos vizinhos, dos conhecidos iam aumentando a cada dia. Teria de casar-se o quanto mais cedo.

Mas tarde, iria ocorrer um comício político naquelas redondezas. Não se falava outra coisa a não ser da missa proposta pelo candidato a prefeito. Deolina não se achava disposta para ir à festa. Dizia que não tinha roupas adequadas.

— Vai, besta! – disse uma vizinha – Doutô Averardo deixou três camisa aqui. Toma uma pra tu.

— Não carece, não.

— Carece sim. De noite vem aqui que eu passo o ferro no teu cabelo. De repente tu arranja um bom partido, um fazendeiro...

Sua vizinha provara que era boa de intuição. Deolina acabou conhecendo o Zé do Boi, um rapaz de vinte e cinco, sete anos mais novo que ela. Tempos depois, já fazia dois meses que estavam namorando. Dessa vez parecia tudo dar certo. No entanto, Zé do Boi aparentava não estar muito satisfeito com o relacionamento. Andava dizendo que iria embora, iria procurar emprego na cidade; iria vender o boi pra comprar umas telhas...

Com os olhos afogados em lágrimas, Deolina estava morrendo de medo de que tudo aquilo que estava vivendo não se resumisse a um discurso de campanha política. Levada pela emoção, como se estivesse num grande palanque, tomou a palavra que estava sob o domínio do jovem namorado e disse:

— Zé, se case comigo... se case comigo. Venda o boi, compre suas telha, mas...case comigo.

— Deo, ainda não fiz a casa – disse o rapaz, tentando se sair daquela situação penosa.

— Tem nada não, Zé. Por enquanto você mora lá em casa, amanhã a gente se vira.

Depois desse dia, Deolina andava com o sorriso na praça, tal como um prefeito em véspera de eleição.

Poesia: Ave família

Ave família Ave mainha repleta de glória meu pai é contigo todo glorioso abençoada és tu, mãe, entre as mães abençoado sou eu por ser o fruto do teu ventre abençoados sou eu e meus fraternos por carregarmos teu sangue e o sangue de nosso pai misturados em nossas veias.

Contribuição: escritor Renato Suttana


EU MESMO
Vago, como uma idéia é vaga ao nascer, como um labirinto é vago quando se está dentro dele – assim o que sou nesta hora, a suportar o fardo de ser eu: janela, porta, a passagem que conduz para fora, como se houvesse lá fora, como se estar aqui não fosse estar aprisionado para aquém de tudo o que se assemelha a um estar lá fora, vago, como uma neblina é vaga quando se procura encontrar na noite a senda perdida, quando se tem de lidar com os fantasmas que vagueiam na noite e saltam de repente de seus nichos e se assanham para assombrar os nossos pensamentos, como se pode ser vago ao dar uma resposta que deveria ter sido decisiva e no entanto nos traiu, nos saltou da boca e se revelou contrária ao que gostaríamos de ter dito ou se revelou simplesmente insatisfatória, imprecisa, como tudo é vago quando se tem de atingir a nitidez ou como o vento é vago atravessando a copa folhuda de uma árvore, ou quando cessa e resta apenas a ramagem, a noite, o telhado, a nuvem, a cumeeira contra a qual assobiou, o sono do pássaro, o silêncio, o anel perdido no escuro, o calçamento silencioso, o ter pisado ali, tamanqueado ali, e já não se ouvirem mais os passos – em silêncio, vago como um silêncio entre duas coisas, dois sons, duas palavras, dois assobios, dois acordes, duas ilhas, dois pensamentos, ou onde não há nenhum pensamento –, como se pode ser vago ao supor o que há por dentro, ao tentar imaginar o núcleo oculto, quando não há transparência, quando não há nitidez, nem lâmina, nem gume, nem a luz que nos previne do desastre, nem o desastre, nem o cortar dessa lâmina, como afundar numa água salobra, numa névoa, numa confusão de águas e névoas, assim como estou agora, a imaginar o exterior – eu mesmo, eu todo, a diluir-me neste vago em que me afogo, em que me perco, em que me abismo.
In: O livro da noite, de Renato Suttana. (Disponível em: http://www.arquivors.com/eumesmo.htm)

Renato Suttana é doutor em Letras(Unesp) e professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste, UNICENTRO. Autor de Uma poética do deslimite: o poema como imagem na obra de Manoel de Barros (dissertação de mestrado, PUC-MG, 1995) e dos livros Visita do fantasma na noite (poesia, 2002), O livro da noite (prosa, 2005) e João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (São Paulo: Editora Scortecci, 2005) e Bichos (poesia, 2005, ed. integralmente ilustrada por NS).

Crônica:Status ou escravização do corpo?



Por Jocenilson Ribeiro

Com o advento do sistema capitalista e a massificação da informação, a modernidade sofreu significativas mudanças tanto em nível sociocultural e econômico quanto em hábitos alimentares. Uma delas foi a excessiva valorização da aparência aliada a valores materiais e subjetivos. Esse fato veio seguido por algumas conseqüências que levaram pessoas a por em risco, muitas vezes, a própria saúde.

A indústria da moda tem levado (e elevado) muitos jovens às passarelas nacionais e internacionais, proporcionando-lhes glamour, fama e altos cachês, ao mesmo tempo em que lhes exige elegância, magreza e outros bens subjetivos. Nesse viés, muitas mulheres tornam-se escravas desse sistema e escravizam o próprio corpo, uma vez que, para atender a tais exigências, passam a colocar em risco sua saúde, desenvolvendo doenças como bulimia, anorexia, depressão etc. Como exemplo disso, viu-se, no final de 2006, a morte da modelo paulista Ana Carolina Reston, 21 anos, vítima da anorexia nervosa.

Outro fator que influencia muitas meninas a se submeterem às exaustivas cobranças pela manutenção da “boa aparência” é a propaganda de produtos cosméticos e clínicas estéticas veiculada diariamente através de TV, autdoors e revistas especializadas. Tal instrumento publicitário leva-as a crer que para ser feliz é necessário apresentar um corpo esbelto (para muitos, sinônimo de beleza e status), pele suave e, ainda, andar portando objetos como bolsas, roupas, jóias e sapatos caríssimos, cuja falta destes utensílios lhes coloca no hall das pessoas incapazes, infelizes e marginalizadas...

Ainda em relação aos (des)cuidados com o corpo, há duas questões passíveis de análise. Se por um lado estão aquelas mulheres que preservam a excessiva magreza em função das “promissoras” carreiras no mundo da moda; do outro, surge um visível número de pessoas que estão acima do peso. Isso se deve, dentre outros fatores, ao hábito prático de comerem fast foods e alimentos gordurosos ou feitos à base de frituras. O pior é que, muitas vezes, acabam esquecendo que podem desenvolver problemas cardíacos ou outras complicações.

Para diminuir a crença nestes mitos da sociedade moderna, na medida em que se almeja o bem estar e a integridade humana, é preciso, pois, que a família dos jovens, a escola, os médicos e outras instituições estejam atentos para estes problemas, a fim de mantê-los cientes de tais efeitos. É preciso também informá-los sobre os riscos do não-cuidado com o corpo, bem como sobre a importância da educação alimentar num momento em que o cuidado com a saúde e a busca pela qualidade de vida tornam-se imprescindíveis.

domingo, 10 de junho de 2007

Poema: dia e noite

...é noite, o preto avança as esquinas do dia e o apaga; o branco anda lentamente por entre a gente; o preto invade o quarteirão, trilha a multidão e segue; o branco assalta à mão armada o outro lado do dia, cruza a avenida, dança o Carnaval, degusta o acarajé; o preto furta o próprio espaço no meio do nada; o branco corta a Avenida Sete ao meio e segue, enquanto o preto pinta o sete e sofre; o preto fica branco e o branco fica preto...nesta avenida, preto ou branco dança...

Poesia: Malena

Imagem do filme "Malena" (2000),
do diretor italiano Giuseppe Tornatore.

Malena



Aí vem Malena
exalando ar de fêmea
por entre as ventanas
que ventam pra mim.
Lá vem maliceira
Vem toda faceira
ungindo a fogueira
na lenha de mim.

Mulher que me avança
mulher que me acende
me vence, me rende
sou refém de mim.
Malena me doma,
me deita e me chama
no drama e na cama
me toma de mim.

Lá vai a Malena,
mulher tão mulher,
me deixou na cena
de pé tão sem mim.
Me levou no sangue
pra si ou pra gangue
me bebeu na langue:
gozou-se de mim.




Poema classificado e publicado na primeira antologia de contos e poesias Concurso Bahia de Todas as Letras, promovido pela Editora Via Litterarum & Edusc. Ilhéus: UESC, 2006. Publicado também no blog: http://revistaentreaspas.blogspot.com/