segunda-feira, 30 de julho de 2007

Acordando com o pé esquerdo*

Por Cristiano Uzêda Teixeira**
Você já ouviu falar na lei de Murphy? Ela diz que se há possibilidade de alguma coisa dar errado, dará; e mais: dará errado da pior maneira, no pior momento e de forma a causar o maior estrago possível. Pois é, hoje a conheci na prática.
Às seis da manhã o celular toca, ninguém levanta. Às seis e dez, mais uma vez, nada. Por força do hábito e contra a vontade do corpo, levanto enquanto todos dormem. O celular está na sala. O corredor parece não ter fim.
— Porra! Não acredito nisso... como é que pode? Ninguém ouviu?
Acordei minha filha, levei-a ao colégio, depois fui ao supermercado. Até então estaria tudo bem a não ser uma dor no dedo que começava a me incomodar.
Ao retornar à minha casa, todos ainda dormiam tranqüilamente. Não demora muito e todos acordam, e as “visitas” de sempre chegam, são os pedreiros... Martelo, prego, cano, forro, telhado, tudo junto. Da área de serviço, ouço uma conversa, são eles, no telhado.
— Acho que vai chover.
— Que nada! É só uma nuvem.
De repente começa a chuviscar. A chuva aumenta. Do corredor, ouço vozes desesperadas.
—Mãe, mãe....tem um pingueirão no quarto, um pingueirão, um pingueirão...
Com o susto, corro rapidamente para o quarto.
—Meu Deus!!! Meu Deus!!! Segura, segura... O computador. A televisão. O DVD. Peraí, tira a antena. Os fios estão no chão... Sai daí Bruno! O guarda-roupa, não pode molhar!
Chovia mais no quarto do que no lado de fora da casa. Estava tudo destelhado, a chuva estava atingindo diretamente o forro. A água escorria pela parede como uma cachoeira. Meus sobrinhos tentavam salvar os eletrodomésticos. Um segurando a televisão e o outro tentando cobrir o computador. A água não parava de invadir o quarto. Os fios do computador, no chão, ameaçavam um curto-circuito; da mesma forma, a lâmpada que, àquela altura, já havia virado um chafariz.
Rodo, vassoura, pano, balde. Tudo para conter a água.
— Eu não mereço isso não!
A chuva começa a passar. O sol a brilhar ao alto. Só tinha que ser daquele jeito. Acontecer aquilo. Só isso.
Aproveitei para lavar o banheiro. Ao concluir esta tarefa, percebo que alguém sobe rapidamente as escadas. Era meu filho de oito anos. Ele estava apertado para ir a o banheiro, mas, infelizmente, não conseguiu chegar a tempo. Adivinha onde ele faz suas necessidades?
— Mas Bruno!! Eu tinha acabado de limpar o banheiro!!!
— Mas eu não consegui chegar no vazo...
Como se não bastasse, a dor do dedo piora. Quase não consigo terminar de fazer o almoço.
Às doze horas, uma invasão de estudantes. A sala vira pista de dança. Almoço a la forró. Era minha filha com os colegas. Tudo bem, pelo menos ela está em casa, mas a dor no dedo...
No começo da tarde, vou ao médico. Parece que a recepcionista não estava nos seus melhores dias.
— Boa tarde.... Boa tarde... (passa um tempo).
— Boa...
Entrego a identidade e o cartão do plano de saúde.
— Pode sentar e aguardar.
Era para eu ser a sexta a ser atendida, mas não foi bem assim. Algumas pessoas foram imediatamente atendidas assim que chegaram, e eu esperando... e a dor no dedo... Ao ser atendida, o médico pede que faça o raio x da mão, ou seja, tome-lhe uma carga de radiação!
Aguardo um pouco o resultado. Ao chamar-me novamente à sua sala o médico diz:
— Tudo normal no seu dedo, pelo menos na estrutura óssea. O que há é uma inflamação. A senhora terá que usar esse remédio durante oito dias, de seis em seis horas, ininterruptamente.
Até então tudo bem, mas logo lembrei que de hoje a uma semana é São João e que eu teria um aniversário neste fim de semana. Conclui que tomar remédio implica em não consumir bebidas alcoólicas.
— Ah não! Até quinta tá ótimo, tomar remédio sexta ninguém merece! - Isso o médico não ouviu, lógico.
Além disso, o médico pediu que o dedo fosse imobilizado. Prontamente, me dirigi ao “enfermeiro”, que também não parecia estar num dia muito agradável. Ele estava a fazer o curativo quando ouço um barulho de sirene. Pergunto:
— O que é isso moço?
Ele olha com descaso e diz:
— Está pegando fogo!!!
— Hã!? Pegando fogo? Eu vou sair daqui agora!
— Calma, minha senhora. É o toque do meu celular!
— Eu não acredito nisso.
Quando reclamei da dor que estava sentindo, ouvi:
—Tá reclamando disso aqui? Você é feliz. Se você soubesse o que passa por aqui...
Coitado! Ele mal sabia o que eu já tinha passado no começo do dia... e ainda fez curativo que qualquer pessoa perceberia que não foi nada profissional. Um verdadeiro “armengue”! Uma faixa de esparadrapo cobria a palma da minha mão!
Voltei para casa dirigindo com aquela mão cheia de esparadrapo... hum!!!
— Eu não mereço.
Ao chegar à farmácia para comprar o remédio receitado, descubro que a caixa contém apenas 10 comprimidos, e que, para atender o período de administração passado pelo médico, teria que comprar três caixas com direito a sobrarem comprimidos e tudo.
— Adoro isso!
Em casa, às dezesseis horas só faltava fazer uma coisa: estudar para uma prova, que tive naquela noite, de uma disciplina que precisava tirar uma boa nota. E a concentração? Quem disse!!??
Alguém tem que dizer a esse tal de Murphy que se ele não foi feliz, problema dele. Eu quero ser!!! Porra!!!

*Este conto foi baseado em fatos reais vivenciados por Soraia Machado, tia do autor.
**Cristiano Uzêda Teixeira é licenciado em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), onde atualmente cursa Bacharelado em Geografia e Especialização em Modelagem em Ciêcias da Terra e do Ambiente.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Madre nobri

Madre nobri

Ave minha mãe repleta de glória. Meu pai é contigo todo glorioso. Abençoada és tu, mãe, entre as mães, e abençoado sou eu por ser o fruto do teu ventre. Abençoados somos eu e meus fraternos por carregarmos teu sangue e o sangue de nosso pai misturados em nossas veias.
jr

sexta-feira, 20 de julho de 2007

ACM e uma outra Bahia

Morre aos 79 anos ACM

Quem ganha e quem perde com a morte de Antonio Carlos Magalhães?
Que Bahia teremos a partir desse 20 de julho, dia de (in)glória?
O que muda e o que se eterniza?
Quais sãos as verdades e quais as mentiras acerca deste homem amado e odiado no Brasil?

Amizade: um outro valor

Amizade: um outro valor

Aos meus amigos,
neste 20 de julho.

Diz a sabedoria popular que a Amizade é a irmã mais próxima do Amor. Na cultura ocidental, ambos caminham juntos, chegando, a depender do contexto, a confundirem-se.

Hoje, num tempo em que se apela tanto pelo cultivo do Amor entre as pessoas — em contrapartida aos efeitos do individualismo e do egocentrismo provocados, muitas vezes, pela desconfiança no outro — percebo um esquecimento da prática da amizade. Mulheres sempre sonharam por um amor perfeito. Lembremos, pois, do mito do príncipe encantado (que virou sapo). Homens também idealizaram um amor celeste, puro, misto de maternidade e sensualismo. Não esqueçamos o complexo edipiano pensado por Freud.

O amor hoje virou objeto cobrável, comprável, solicitável, cuja ausência leva o outro a entrar em desespero. Às vezes, tal sentimento é moldado num formato 29 polegadas, quando não em tela de cinema. Os programas de TV e filmes românticos acabam “vendendo”, de certa forma, um modelo de amor jamais alcançável.

Voltando às cobranças (ou às compras). Quem nunca ouviu a diplomática pergunta: “Você me ama? Diga-me: você me ama?” Mas, raramente se ouve: “Você é meu amigo ou minha amiga? Você gosta de ser minha amiga ou meu amigo?” Não! A amizade não vem mais caminhando no mesmo rumo do amor já faz tempo. Amor hoje é projetado em espelho, cujo reflexo tem que corresponder às nossas expectativas e exigências. E quando não ocorre é porque nós não o projetamos antes. Amor hoje virou sinônimo de sexo, seja real ou virtual. O importante é ouvir no final a resposta positiva da pergunta: “foi bom pra você?”


Amizade não se cobra, não se questiona, não se vende, não se empacota em formatos televisivos nem fílmicos. Amizade se constrói. Amizade não gera lucros. Alguém conhece alguma loja de filo shop? Creio que não! Mas se conhece sexy shop. Quantas revistas há nas bancas sobre a preservação da amizade ou sobre a conquista da amizade? Nenhuma! Mas há nas bancas revistas sobre o verdadeiro amor, o grande amor, o amor perfeito, o Príncipe Encantado ou a Cinderela loura, de olhos azuis e corpo perfeito das novelas globais. Nem vou falar das revistas pornomágicas...

Por outro lado, assim como o amor, a amizade é traída. Assim como no amor, deve-se dar chance ao amigo ou à amiga a explicar-se diante do possível cheiro de traição. Assim como o amor, a amizade deve ser, sobretudo, cultivada, reavaliada, reconstruída, repensada e comemorada constantemente.
O amor em nossa cultura carrega diferentes sentidos a depender do objeto amado ou do ser que o manifesta. Amor de pais, amor de irmãos, amor de cônjuges, amor divino... Existe amor de amigo? Penso que a amizade seja única... posso estar enganado! Sei que ser amigo é enquadrar-se numa linha, em cujas extremidades estão os grandes irmãos e os grandes amantes, que erram, que acertam, que carecem de perdão.

Construamos, pois, amigos. Alguns vêm e ficam, outros vêm e vão. Uns mantêm-se presentes, outros perdem-se na multidão. Uma coisa é certa: ter amigos é se achar no dever de proteger e no direito de ser sempre protegido. Amigos não se qualifica como verdadeiros ou falsos, pois são sempre verdadeiros. Os que julgamos falsos se auto-revelam, tavez, como traidores de um sentimento nobre que eles mesmos se eximiram de cultivar.

Amemos então nossos amigos, sejamos amigos de nossos amores. É mais uma chance que temos de dar um novo sentido à nossa vida.
jr

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Temporal das horas



Temporal das horas



Viver é pensar no tempo que me cerca sem ter que pensar na hora certa de partir, o tempo são as gotas de chuvas sobre mim e nunca parei um minuto para contá-las, não penso nas horas que se vão, mas relembro-me de cada segundo que me empurraram para a escuridão, a vida não mais é forte, ao final dos tempos a penumbra se encarrega de me levar à luz dos desencantos, e eu - este deslavado - mais do que levado, sou possuído pelos escombros das horas, já não nasci e meu fim está logo ali atrás das vozes, já não vivi e meu fim caminha em outras direções, já não me vale esconder de mim outros e tantos nós de minha cabeça porque as horas hão de doá-la ao tempo, pensar,pensar, pensar, pra que pensar se não mais há tempo, os anos já não me restam, os dias cansaram-se de mim, as horas estão aqui em minha defesa aguardando os vermes consumirem os minutos que me restam com estas palavras.

jr

quarta-feira, 18 de julho de 2007

O paradigma das mudanças climáticas

O PARADIGMA DAS MUDANÇAS CLIMÁTICAS



Por Henrique Oliveira de Andrade


Mudança Climática, Aquecimento Global, El Niño, La Niña, afinal o que está acontecendo com o nosso planeta? Estas e outras questões são levantadas quando assistimos à televisão, lemos um jornal ou uma revista. Em certos momentos, somos levados a acreditar que a culpa é sempre do clima. É neste contexto que utilizamos palavras que expressam uma realidade que alguns dizem ser alarmante, colocando o Homem como o grande causador de tais mudanças. Outros afirmam fervorosamente que tudo isso é um ciclo natural do planeta, deixando a sociedade numa dúvida um tanto espiritual: será o fim do mundo?



É dessa forma que este assunto tão intrigante e ao mesmo tempo científico e religioso acaba caindo no senso comum, quando se acredita que a Terra está no seu fim, relembrando o velho e conhecido apocalipse da sagrada Bíblia: o Homem com suas mazelas sócio-ambientais destruirá todo o planeta por castigo divino.



Com o advento do termo “Aquecimento Global”, a mídia como uma grande massificadora das notícias desloca o foco das discussões, que ao invés de desmistificar, causa uma intensa onda de “fim do mundo” anunciado. Esta “realidade” climato-ambiental acaba travestindo grandes problemas mundiais de ordem econômica, social e política na forma de alarmismo frenético.



A ciência para alguns é direta e objetiva, porém está sendo contestada na análise de tais mudanças climáticas. Segundo alguns pesquisadores, elas são cíclicas e oscilam de acordo com parâmetros como inclinação Terra-Sol dentre outros. No entanto, alguns culpam o Homem e as atividades industriais por essas mudanças, oscilações, variações e ritmos de temperaturas em escala global.



Uma coisa é certa: a Terra está passando por aquecimento abrupto nos últimos anos, porém isso já aconteceu em épocas passadas. A grande questão é a causa e o porquê do aquecimento, haja vista que a Revolução Industrial introduziu o câncer do mundo contemporâneo que é a indústria, no entanto deve-se ter cuidado na análise de fatos e de resultados. Estas são algumas dúvidas que perpassam o campo da ciência: O aquecimento global existe? Será que ele é global mesmo? É o fim do mundo ou um fenômeno climático extremo? O Planeta está aquecendo ou resfriando? Como estamos na era das incertezas, reinam as dúvidas e os questionamentos.


Henrique Oliveira de Andrade (1985) Graduando em Licenciatura e Bacharelado em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS / Bolsista Fapesb / Estação Climatológica (Desenvolve pesquisa sobre Clima Urbano, Geotecnologias e Estimativa de Evapotranspiração Regional) - Professor de Geografia do município de Feira de Santana-BA - henriqueuefs@ig.com.br

terça-feira, 17 de julho de 2007

Apelo - Dalton Trevisan



Apelo
Dalton Trevisan

Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.

Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.

Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.
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Este é um dos contos que mais revelam a realidade familiar presa no curso do tempo que mais parece ligar-se a uma eternidade. Uma verdade que se põe longe das definições filosóficas e convencionais batiza o pequeno conto de Trevisan, cujo enredo nos coloca diante de uma imagem fílmico-fotográfica triste de um homem solitário. Solitário sim... A que se deve essa solidão? Talvez a morte denunciada pela ausência constante da Senhora faça o narrador avaliar o mal sem volta provocado por sua indiferença.


Dalton Trevisam (1925) é contista premiado e formado em Direito. Autor de mais de vinte obras, dentre eles Cemitérios de elefantes (1964), O vampiro de Curitiba (1965), A guerra conjugal (1969), A faca no coração (1975). Muitos de seus contos foram publicados em várias línguas. Alguns deles foram até adaptados a filmes, seriados de TV e peças teatrais no Brasil. Em 2006, o conto Capitu sou Eu transcrito do livro homônimo publicado em 2003, compôs a antologia Contos Cruéis: As narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea.
Para quem não conhece, sugiro que leiam seus excelentes e intrigantes contos tomando café quente num final de tarde. Obs: não mais quente que muitas de suas narrativas!

Um abraço!
jr

sábado, 7 de julho de 2007

Dumont do Mundo




Dumont do Mundo


Se eu fosse Drummond não teria sido um Drummond,
Não cantaria para este mundo caduco
Também não regaria a Rosa do Povo com o sentimento do mundo
As pétalas não resistem às lagrimas acidas, fúnebres, vulcânicas.

Se eu fosse Drummond seria somente mineiro,
Seria um simples brasileiro dentre os tantos brasileiros
Que em tarde de janeiro jamais vão a Pasárgada
Pra ver a vida passar, pra ver a banda tocar no mar do Leblon.

Se eu fosse Drummond não seria poeta
Teria sido um jogador, um bom ator, um atleta.
E faria gol com as pedras que encontro em meu caminho,
Porque no meu caminho não há somente uma pedra,
Mas um milhão de pedras no meio do meu caminho.

Se eu fosse Drummond não beijaria a América
Não cantaria o amor a América,
Também não lhe daria flores, não cantaria louvores.
Porque América o traiu com Raimundo e o deixou
Vagando no mundo, ouvindo o Corvo a perguntá-lo:
“José para onde, para onde José?”

Ah, se eu fosse o Gandhi Andrade apagaria a tocha de América,
Beijaria a Rosa de Hiroshima, e da outra menina.
Pregaria até nos confins do mundo a paz de Mahatma,
Mas no décimo dia de setembro subiria aos céus de dezembro
Porque na seguinte madrugada Dumont repousaria
As cinzas das gêmeas por sobre o mar de Manhattan.



jr

terça-feira, 3 de julho de 2007

Palavra: sinônimo de poder?

"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (São João, 1:1). Tomando o versículo supracitado, percebemos a acepção de Verbo como o próprio Deus. Este vocábulo é um dos mais polissêmicos de nossa língua e, além de ser o nome de uma das classes gramaticais, faz referência semântica à entonação, à palavra, ao discurso, à sabedoria, ao poder, enfim a Deus.


Estando de passagem numa comunidade do Orkut, site de relacionamentos, deparei-me com uma polêmica — sustentada por dois estudantes de Letras — que envolvia o uso da norma-padrão da Língua Portuguesa. Peço, desde já, perdão aos envolvidos pela apropriação de trechos das discussões publicadas, embora estejam em local de domínio público. Peço perdão também pela intromissão, mas confesso que a abordagem de tal tema chamou-me bastante a atenção a ponto de me prender à leitura. Fazendo minhas análises discursivas e formais acerca do assunto, cheguei a algumas conclusões (e qualquer visitante do referido site pode perceber o mesmo desde que não seja parte ou toda apagada). Mas, antes, gostaria de dizer que estou feliz por ter tido acesso a esta discussão e por ter ido dormir com a certeza de que aprendi mais.

Primeiro: tudo começou por conta do uso do “mim” em lugar de “me”; segundo: os autores apresentaram argumentos - com ou sem fundamentos teóricos e científicos - a fim de defenderem suas posições em face do exposto, o que é normal num debate; terceiro: a luta com e pelo poder estava em jogo: poder de quem sabe mais, poder de quem ler mais, poder de que fala bem, poder de quem ensina melhor, poder de quem debate retoricamente melhor, poder, poder, poder... E assim seguem suas diferentes formas e atuações.

No início, sem a menor intenção de polemizar, a estudante feliz “tascou” um ‘mim’ em sua frase “recebi um email mim parabenizando: ‘parabéns! o seu trabalho foi deferido’” e o estudante corrigiu-a dizendo: “Não seria 'me parabenizando'"? Ela refutou e ele novamente a responde, dessa vez com pressupostos teóricos: “Há a norma-padrão e a variação lingüística, certo? Porém, o que espera a sociedade de um estudante de Letras? Acredito que seja a norma-padrão. O último livro de Bagno está maravilhoso. Dê uma lida nele e depois responda à sua própria pergunta”.

No entanto, nessa luta de ataques e contra-ataques retóricos, em que Sócrates apresentou a Dialética e, em nossos dias, Van Eemerem
escreveu sobre a argumentação e contra-argumentação, vejo-os muito mais interessados em ouvir do outro “concordo plenamente com você” ou “você conseguiu me (mim) vencer” do que: “puxa, vida, como não tinha pensado nisso antes!” Ou: “aprendi contigo isso!” Mas a humildade passou distante dos interlocutores. Talvez sem intenção, o preconceito estava saindo pela culatra, ou melhor, pela boca. A saber: Marcos Bagno, citado no debate, é um dos sociolingüistas que acreditam que a língua é também objeto de manifestação de preconceito.

Notei, portanto, que o estudante em uma de suas respostas deu também uma escorregadinha contra a norma-padrão ao dizer “Aconselho dar uma lida nos referências teóricos sobre a variação e mudança lingüística”. Mas vejo que ele também se passou, e não devemos cobrar dele a norma por isso, tendo em vista que esta crônica pode estar sujeita a correções gramaticais e discursivas; e, como disse a internauta, “na net, a velocidade em que escrevemos nos impossibilita [fazer] certas revisões”.

Por outro lado, segundo a referida norma, o trecho do futuro literato deveria estar escrito da seguinte maneira: Aconselho-a a dar uma lida nos referenciais teóricos (ou nas referências teóricas) sobre a variação e mudança lingüísticas. Sendo assim, de acordo com Celso Cunha e o Dicionário Aurélio, ele cometeu alguns deslizes nesta sentença. Vejamos: 1- colocação pronominal: o verbo sendo bitransitivo exige a pessoa (O.D) quem se aconselha (a profª.) e a coisa que deve servir de conselho para esta pessoa (O.I); 2- regência: o verbo é regido pela preposição ‘a’; 3- concordância A: os modificadores ‘os’ e ‘teóricos’ devem concordar com o termo modificado ‘referências’ (palavra de gênero feminino), mas poderia manter os modificadores e escrever ‘referenciais’ (gênero masculino); 4- concordância B: “...variação e mudança lingüística.” – já que a variação e a mudança referem-se à questão lingüística, basta acrescentar ‘s’ naquela última palavra para que haja concordância. Se apelássemos para um português escorreito típico dos nossos colegas lusófonos, poder-se-ia dizer, eliminando a locução verbal: Aconselho-a a ler os referenciais teóricos (ou as referências teóricas) sobre a variação e mudança lingüísticas. Pergunto: quem vai pensar nisso na hora da escrita em internet! Poucos!

É claro que não devamos nos tornar apáticos diante de uma norma que deve ser respeitada assim como o próprio código de trânsito brasileiro. Já pensou se não houvesse uma regularização? De fato, os professores de língua portuguesa devemos possibilitar aos alunos o conhecimento da língua padrão bem como a variante, haja vista que a sociedade cobra-nos e vai cobrar-lhes a norma. Entretanto, não devemos andar por aí como reféns da gramática normativa. Como disse um dos futuros professores, aos quais me refiro nesta crônica, “o monitoramento lingüístico está ligado aos diversos contextos de fala”. As pessoas com um maior nível de escolaridade conhecem e reconhecem bem as normas popular e padrão; e acrescento: as de nenhuma ou menor nível de escolarização também as (re)conhecem, só não as dominam como aqueles.

Apesar de a palavra ser também um instrumento de poder, não devemos tomá-la como “cajado” para se sobrepor ao outro, tentando nos parecer dono de uma inteligência e saber que Deus (o Verbo Todo-poderoso) só conferiu a alguns: os que a dominam de uma forma impecável. Portanto, nós, vistos como falantes cultos ou não (professores, doutores, padeiros, médicos, advogados, açougueiros, jornalistas, bancários, padres, operários, ricos ou podres etc.) devemos ter a consciência de que a palavra deve ser útil e eficiente ao processo de comunicação nos espaços de relações sociais, sem que haja necessidade de ferir a dignidade humana.
jr

domingo, 1 de julho de 2007

Frase do mês

Barcos e mastros

"A vida não merece nada se não temos uma boa história pra contar."
(não sei)


jr