quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Impressões de um pedaço do mundo

(Foto: N. Ribeiro)


Faz tempo que aqui não escrevo nada. Não me sinto culpado por isso, afinal este blog é uma espécie de canteiro. É um lugar onde expresso meu barulho, meu silêncio, uma maneira de olhar o mundo. Não sei bem dizer qual é sua real função. Talvez ele não tenha mesmo que apresentar uma função. É um blog, não um diário, um periódico jornalístico.
Ocorre que hoje vim aqui escrever. Falar, dizer alguma coisa diferente.
Desde que atravessei o Atlântico – e aqui ficarei por um tempo -, disse que iria escrever com mais frequência, disse ainda que eu deveria publicar alguma coisa sobre as impressões desse novo pedaço de mundo: Paris! Disse que faria com frequência. Menti! Hoje faz quase 42 dias e um punhado de horas que estou aqui, e só agora escrevo.
Não prometo nada, devo escrever sempre que estiver tempo, vontade, feliz ou triste. Exijo apenas uma coisa de mim: escrever na minha língua materna, mas também em francês... os equívocos linguísticos (de qualquer ordem: ortográfico, sintático, semântico...) fazem parte da aquisição de qualquer língua; vou resolvendo com o tempo e com o aprendizado.
Agradeço àqueles que me enviarem sugestões.

Impressions d’une partie du monde

Il y a beaucoup de temps que je n’écris rien ici. Je ne me sens pas coupable pour ça; au fond, ce blog est une espèce de cave. C’est un endroit où je peux exprimer mon bruit, mon silence ; enfin, c’est une manière de regarder le monde. Je ne sais pas dire quelle est sa réelle fonction. Peut-être, il n'a besoin de présenter, en fait, une 
fonction spécifique et vraie. C'est un blog, pas un journal, un 
hebdomadaire, etc. En effet, aujourd'hui, je viens ici pour écrire; pour parler, pour dire quelque chose un peux différente.
Donc, depuis que j'ai traversé l'Atlantique - et je vais rester là pour un certain temps -, je’ai dit que j'allasse d’écrire plus souvent, j’ai dit aussi que je dusse de poster quelque chose sur les impressions d’une partie du monde: Paris! J’ai parlé que je fisse fréquemment ça. J'ai menti! Aujourd'hui, il y a environ 42 jours et quelques heures que je suis là, mais seulement maintenant j’écris quelque chose.
À moi je ne promets rien; je dois écrire toujours quand j’ai du temps, de la volonté ; quand je suis heureux ou triste. Je ne demande qu'une chose de moi: d’écrire dans ma langue maternelle, mais aussi en français... les erreurs linguistiques (il n'importe pas quel ordre: orthographique, syntaxique, sémantique...) font partie de l'acquisition d'une langue. Je vais les corriger dans les autres textes avec le temps et l'apprentissage.
Je vous remercie de m'envoyer vos suggestions.


jr

quarta-feira, 6 de junho de 2012



poema sem face

A M. Arruda

Noites frias, e o silêncio bem aqui dentro completa-me
um fio de luz perfura esta folha de papel sem textura e tinta
palavras sem nexo, caneta que falha aos dedos trêmulos.

Falta-me a luz do sentido que foge em meia sintaxe,
Encolho-me aqui na falta de ti – inteiro – lutando contra um poema
– que me esvazia assim longe das noites quentes e de tua face.


jr




Foto: J. Ribeiro

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Entre Houaiss e ciganos: o que pode e o que deve essa língua?



Entre Houaiss e ciganos: o que pode e o que deve essa língua?

Por Jocenilson Ribeiro

Depois de ler e reler as matérias no portal UOL e na Folha [cf. textos clicando nos links] e de conversar com amigos e colegas especialistas ou não no assunto, exponho o que penso a respeito. Respeitando o lugar dos especialistas em dicionário (lexicologia, lexicografia etc.), emito minha opinião a partir de concepções gerais da Linguística e daquelas disciplinas em tempo de graduação.
Qual é a função primeira de um dicionário? Penso que seja apresentar - grosso modo -, aos falantes de uma dada língua, os termos que compõem o léxico desta língua. Contudo, existem vários tipos de dicionários, que variam conforme função, especialidade, modalidades (bilíngues; monolíngues), tamanho (mini, “completo”) etc. Um dicionário é o lugar em que se “estabilizam sentidos”, lugar onde elas, as palavras, dormem; seus sentidos ali são latentes, mas o funcionamento delas se dão no ato de enunciação (cf. Benveniste, 2005), no momento em que enunciador e enunciatário em situação concreta fazem HAVER SENTIDOS; portanto, isso ocorre fora dessa gaveta que se chama dicionário.
Não podemos perder de vista o seguinte: o trabalho lexicológico deve apresentar os significados, a origem, a morfologia, o conceito e o uso de termos/palavras numa comunidade de falante - seja ela em nível local, regional, nacional, internacional... Então, visto assim, podemos dizer que esse trabalho é analítico e descritivo, porém, jamais prescritivo, normativo e censurador porque não cabe a esta ciência (e acredito que com as outras não deva ser diferente frente a seus objetos) omitir o uso e determinadas características destes termos ainda que eles apareçam nas situações reais de fala e de escrita.
Recentemente, passamos a notar que o verbo FICAR, por exemplo, passou por um processo de semantização, diferentemente daqueles usos com os quais estávamos acostumados.  A acepção ganhou sentido(s) afetivo(s) que varia(m) gradualmente conforme grupos de sujeitos, temporalidade nas relações de “namoro” etc... O dicionarista precisa então atualizar o dicionário o tempo todo porque o léxico de uma língua é vivo e movente, jamais se estabiliza como talvez queira e/ou pense o MPF (Ministério Público Federal) para com o tal do Houaiss.
Então, diante dessa minha longa argumentação, é papel do linguista (seja um lexicólogo, lexicógrafo, dicionarista, terminólogo etc.) descrever os fenômenos linguísticos - neste caso o surgimento, a origem, o uso de termos etc. – como aparecem ou apareceu num dado tempo na sociedade. Se ele é ou não pejorativo, se ofende ou não, se atende melhor a este ou àquele grupo social, não cabe ao dicionarista tomar esta ou aquela posição, que apenas deve por em dicionário tal como o uso aparece. Nada o assegura de que tal uso vai se estabilizar. É claro que, em práticas científicas, não se anula nunca as escolhas, os valores, as posições ideológicas, as determinações dos sujeitos envolvidos sejam eles na condição de observador ou de observado. Engana-se quem acredita que isto não acontece.
Ocorre que esta medida infundada do MPF, com base nessa vontade de verdade (para usar uma acepção foucaultiana, Cf. Foucault, 2002) assentada nas práticas discursivas do politicamente correto, vai de encontro com o trabalho científico, porque o objetivo é censurar, normatizar, prescrever, proibir, abonar, calar ... com base no que se deve ou não dizer numa língua. O problema então é de outra ordem: façam-se então dicionários didático-pedagógico-doutrinantes, não aqueles capazes de apresentar como os fenômenos linguísticos têm se manifestado. O preconceito, os estigmas, a manutenção dos estereótipos surgem e se perpetuam da e na sociedade, partem das pessoas, das instituições; o dicionário é um mero instrumento que apresenta uma faceta muito mínima de suas práticas, dando-nos a ver como se pensou e ainda se pensa, ainda que em forma de recorte, num lugar e espaço.
É ingênua a tese de que - tentando calar as palavras, deixá-las muda como se isso fosse possível - se mudam as crenças e os valores dos homens. Não! A palavra, por mais cruel que ela venha a ser, é a espessura intersubjetiva dos usuários de uma língua; muda-se o modo de eles agirem no mundo que elas juntamente vão ganhando outras formas, adquirindo novas semioses. Se as noções de “cigano”, vistas no Houaiss, não mais condizem com o modo como pensamos e concebemos as coisas hoje, isso não nega o fato de que condisseram, a sua maneira e em algum momento de nossa história, com o modo de falar e agir no mundo. Então por que tentar bani-las do dicionário? Seria um modo de nos envergonhar de nossas práticas de outrora e tentar corrigir nossos “erros de significação”? Não tenho dúvidas de que, se medidas como essas empreendidas pelo MPF forem levadas tão a sério, nossos sucessores da palavra nos próximos 200 anos vão rir de nossas ingenuidades ou banir de seus dicionários palavras com as quais lidamos hoje tranquilamente e que para eles poderão revelar a maior ofensa, agressividade e mazelas humanas. Quem garante que não vão sentir-se envergonhados com o modo como distribuímos a palavra, a renda, os salários entre homens e mulheres, as práticas políticas, a administração dos bens públicos, o tratamento aos diferentes que constituem nossa sociedade? Do mesmo modo, a palavra – signo ideológico por onde e com a qual construímos nossas máscaras, mas tentamos vender ao outro a nossa maior pureza e integridade subjetiva como se o outro não fosse capaz de nos interpretar a sua maneira e perceber que inconsciente ou não todos nós dissimulamos a vida inteira.
Voltando à questão central, penso que nosso notável equívoco está em acreditarmos que um dicionário – instrumento em que ‘se tenta imobilizar/imortalizar os significados e conceitos’ – dá sentido às coisas, quando, na verdade, é buscando nele as palavras que procuramos construir os sentidos em nosso modo de pensar, de dizer, de escrever... Se fosse diferente, não se veriam várias acepções para um único termo como, por exemplo, FICAR (cf. Houaiss, 2007).
Vai outro exemplo mais ilustrativo sobre o papel do cientista contraposto às vontades de instituições movidas pela vontade do politicamente correto. Se um biólogo descobre que golfinhos machos apresentam comportamentos semelhantes àqueles vistos frequentemente entre “casais” formados por macho e fêmea, simulando uma relação de acasalamento, seu papel é, simplesmente, descrever o fenômeno, mostrar que isso acontece ou passou a ser visto em comunidades desses animais. Não cabe ao pesquisador evitar expor, com base em valores e crenças pessoais de ordem X ou Y, este fenômeno. Por outro lado, é papel do biólogo (com ou não auxílio do livro didático) levar esse fenômeno aos estudantes, à sociedade, a quem se interessar... Se o MPF resolve, por outro lado, proibir o uso do material didático em que conste esse fenômeno, sob pena de que se está tentando justificar ou sustentar a homossexualidade em certos mamíferos (inclusive os humanos), não é mais uma questão de ciência à vista do que o biólogo apresentou, e sim de norma, valor e juízo de direito, a menos que se prove o contrário. Daí, tal ilustração seja perfeitamente cabível para pensarmos na função de um dicionarista, lexicólogo, lexicógrafo, terminólogo etc.
Hoje, parece que mais do que em outras épocas, sob a vulgata do politicamente correto de que falei há pouco, há uma tendência generalizada (leia-se: transcendem-se os limites nacionais) de se proibir o uso de certas palavras: denegrir, judiar, negro, preto, cadeirante, baianada, homossexual-ISMO, palhaçada etc. servem-nos para ilustrar. Muitos esquecem que a origem e a recorrência de termos na sociedade refletem justamente os valores, as crenças, os saberes, as verdades, as práticas, as subjetividades e o modo de ver o mundo e de interpretá-lo pelos indivíduos... se estão corretos ou não, se deveriam ou não usar certos termos e dizer certas coisas é uma questão de mudança de mentalidade individual e coletiva construída na escola, na família e noutros diversos espaços de construção de conhecimento, mas não tentando evitar que este ou outro conceito esteja num dicionário, até porque não se fala qualquer coisa em qualquer momento e de qualquer lugar (cf. Foucault, 2001). Afinal, de que adianta mostrar apenas um SENTIDO POSITIVADO num dicionário se é justamente na vivência dialógica e nas interlocuções que os diversos outros sentidos aparecem, fortalecem-se ou simplesmente caem em desuso? Acho que seria tapar o sol com a peneira, subestimando, desse modo, os usuários de uma língua em pensar com a própria linguagem por meio da qual constroem sua história.
No período presidencial do Lula, alguns inconformados com sua política de cotas e de bolsa família começaram a usar o termo “lulismo” numa concepção depreciativa. Vamos agora fingir que essa palavra não faz sentido e ainda, que ela denigre [ops!], deprecia, a imagem de nosso ex-presidente e por isso precisa ser banida dos dicionários como se ela nunca tivesse existido?
Não estou defendendo que se deva mesmo achar que o termo “cigano” tenha aquela acepção pejorativa e que se mantenha seu ensino e difusão com significados dessa ordem em dicionários. Longe disso. Quero dizer que, se em algum momento de nossa história tal sentido apareceu, isso se deve às condições de emergência da época (cf. Foucault 2008). E deve ser registrado quer queiram quer não, como o termo “baianada”, por exemplo.
Confesso que, quando escutei esta palavra pela primeira vez sendo numa acepção em que se referia a algo ruim, jeito de se vestir maltrapilho e descombinado (fora de etiqueta à Glória Kalil), ou uma barbeiragem no trânsito, fiquei assustado; mas jamais vou impedir que este termo apareça em dicionários nem evitar que alguém a utiliza, afinal, quando a usam não é a minha identidade enquanto baiano que está sendo ameaçada, mas uma forma (ainda que de seu uso eu discorde) de significar as coisas no mundo num olhar interpretativo de determinados sujeitos.
De uma coisa tenho certeza: quando se tenta evitar/proibir/impedir que se diga alguma coisa (tente-se calar uma voz, uma palavra), surge outra com mais intensidade ainda, de modo que a resistência seja fruto de um poder que não se sustenta por muito tempo, estilhaçando-se em tantos outros sentidos capazes de esvaziá-lo ou formar novos centros de poder e de resistência. Penso que é assim que ocorre com as práticas semiológicas e discursivas dos homens para construírem SUA história, evitando as diferentes versões das histórias.