terça-feira, 3 de julho de 2007

Palavra: sinônimo de poder?

"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (São João, 1:1). Tomando o versículo supracitado, percebemos a acepção de Verbo como o próprio Deus. Este vocábulo é um dos mais polissêmicos de nossa língua e, além de ser o nome de uma das classes gramaticais, faz referência semântica à entonação, à palavra, ao discurso, à sabedoria, ao poder, enfim a Deus.


Estando de passagem numa comunidade do Orkut, site de relacionamentos, deparei-me com uma polêmica — sustentada por dois estudantes de Letras — que envolvia o uso da norma-padrão da Língua Portuguesa. Peço, desde já, perdão aos envolvidos pela apropriação de trechos das discussões publicadas, embora estejam em local de domínio público. Peço perdão também pela intromissão, mas confesso que a abordagem de tal tema chamou-me bastante a atenção a ponto de me prender à leitura. Fazendo minhas análises discursivas e formais acerca do assunto, cheguei a algumas conclusões (e qualquer visitante do referido site pode perceber o mesmo desde que não seja parte ou toda apagada). Mas, antes, gostaria de dizer que estou feliz por ter tido acesso a esta discussão e por ter ido dormir com a certeza de que aprendi mais.

Primeiro: tudo começou por conta do uso do “mim” em lugar de “me”; segundo: os autores apresentaram argumentos - com ou sem fundamentos teóricos e científicos - a fim de defenderem suas posições em face do exposto, o que é normal num debate; terceiro: a luta com e pelo poder estava em jogo: poder de quem sabe mais, poder de quem ler mais, poder de que fala bem, poder de quem ensina melhor, poder de quem debate retoricamente melhor, poder, poder, poder... E assim seguem suas diferentes formas e atuações.

No início, sem a menor intenção de polemizar, a estudante feliz “tascou” um ‘mim’ em sua frase “recebi um email mim parabenizando: ‘parabéns! o seu trabalho foi deferido’” e o estudante corrigiu-a dizendo: “Não seria 'me parabenizando'"? Ela refutou e ele novamente a responde, dessa vez com pressupostos teóricos: “Há a norma-padrão e a variação lingüística, certo? Porém, o que espera a sociedade de um estudante de Letras? Acredito que seja a norma-padrão. O último livro de Bagno está maravilhoso. Dê uma lida nele e depois responda à sua própria pergunta”.

No entanto, nessa luta de ataques e contra-ataques retóricos, em que Sócrates apresentou a Dialética e, em nossos dias, Van Eemerem
escreveu sobre a argumentação e contra-argumentação, vejo-os muito mais interessados em ouvir do outro “concordo plenamente com você” ou “você conseguiu me (mim) vencer” do que: “puxa, vida, como não tinha pensado nisso antes!” Ou: “aprendi contigo isso!” Mas a humildade passou distante dos interlocutores. Talvez sem intenção, o preconceito estava saindo pela culatra, ou melhor, pela boca. A saber: Marcos Bagno, citado no debate, é um dos sociolingüistas que acreditam que a língua é também objeto de manifestação de preconceito.

Notei, portanto, que o estudante em uma de suas respostas deu também uma escorregadinha contra a norma-padrão ao dizer “Aconselho dar uma lida nos referências teóricos sobre a variação e mudança lingüística”. Mas vejo que ele também se passou, e não devemos cobrar dele a norma por isso, tendo em vista que esta crônica pode estar sujeita a correções gramaticais e discursivas; e, como disse a internauta, “na net, a velocidade em que escrevemos nos impossibilita [fazer] certas revisões”.

Por outro lado, segundo a referida norma, o trecho do futuro literato deveria estar escrito da seguinte maneira: Aconselho-a a dar uma lida nos referenciais teóricos (ou nas referências teóricas) sobre a variação e mudança lingüísticas. Sendo assim, de acordo com Celso Cunha e o Dicionário Aurélio, ele cometeu alguns deslizes nesta sentença. Vejamos: 1- colocação pronominal: o verbo sendo bitransitivo exige a pessoa (O.D) quem se aconselha (a profª.) e a coisa que deve servir de conselho para esta pessoa (O.I); 2- regência: o verbo é regido pela preposição ‘a’; 3- concordância A: os modificadores ‘os’ e ‘teóricos’ devem concordar com o termo modificado ‘referências’ (palavra de gênero feminino), mas poderia manter os modificadores e escrever ‘referenciais’ (gênero masculino); 4- concordância B: “...variação e mudança lingüística.” – já que a variação e a mudança referem-se à questão lingüística, basta acrescentar ‘s’ naquela última palavra para que haja concordância. Se apelássemos para um português escorreito típico dos nossos colegas lusófonos, poder-se-ia dizer, eliminando a locução verbal: Aconselho-a a ler os referenciais teóricos (ou as referências teóricas) sobre a variação e mudança lingüísticas. Pergunto: quem vai pensar nisso na hora da escrita em internet! Poucos!

É claro que não devamos nos tornar apáticos diante de uma norma que deve ser respeitada assim como o próprio código de trânsito brasileiro. Já pensou se não houvesse uma regularização? De fato, os professores de língua portuguesa devemos possibilitar aos alunos o conhecimento da língua padrão bem como a variante, haja vista que a sociedade cobra-nos e vai cobrar-lhes a norma. Entretanto, não devemos andar por aí como reféns da gramática normativa. Como disse um dos futuros professores, aos quais me refiro nesta crônica, “o monitoramento lingüístico está ligado aos diversos contextos de fala”. As pessoas com um maior nível de escolaridade conhecem e reconhecem bem as normas popular e padrão; e acrescento: as de nenhuma ou menor nível de escolarização também as (re)conhecem, só não as dominam como aqueles.

Apesar de a palavra ser também um instrumento de poder, não devemos tomá-la como “cajado” para se sobrepor ao outro, tentando nos parecer dono de uma inteligência e saber que Deus (o Verbo Todo-poderoso) só conferiu a alguns: os que a dominam de uma forma impecável. Portanto, nós, vistos como falantes cultos ou não (professores, doutores, padeiros, médicos, advogados, açougueiros, jornalistas, bancários, padres, operários, ricos ou podres etc.) devemos ter a consciência de que a palavra deve ser útil e eficiente ao processo de comunicação nos espaços de relações sociais, sem que haja necessidade de ferir a dignidade humana.
jr

2 comentários:

RIC disse...

Mmmm, meu caro Nilson, deliciosa leitura! Parabéns pela «acta», relatório, análise e avaliação de uma interessante situação de comunicação! Enfim, talvez demasiado competitiva entre ambos, mas mesmo assim interessante.

1. «Aconselho-a a ler os referenciais teóricos (ou as referências teóricas) sobre a variação e mudança lingüísticas.»
Esta é a redacção «final» que a frase receberia aqui em Portugal, sem que bada se lhe possa apontar.

2. Já quanto a: «... a sociedade nos cobra e vai cobrá-los a norma.»
Há um problema com o pronome. Vejamos:
Quem cobra? A sociedade (Suj.);
O quê? A norma (O.D.);
A quem? A eles/lhes (O.I.).
Assim:
«A sociedade (nos) cobra(-nos) e vai cobrar-lhes a norma.»

Aparece! :-)
Um abraço!

Palatus disse...

Caro Ric,
Agradeço pela visita e mais ainda pela certíssima correção. Farei a mudança logo em seguida. Como disse na crônica, o texto está aberto a críticas e correções tanto formais quanto discursivas.
Volte sempre, sentir-me-ei honrado!
Abraço,
Nilson