terça-feira, 8 de setembro de 2009

Serviço completo de uma fofinha

Faz muito tempo que não entro em salão de beleza. Nada contra a instituição de estética, mas, por costume doméstico, acabo sempre indo a salões com outra denominação quando o objetivo é cortar o cabelo.

Desde menino, fui encaminha ao cabeleireiro ou barbeiro, e, a este último, constantemente acompanhando meu pai que resolvia dar a cara para um tal de Zeca passar-lhe a navalha. Serviço completo, autorizava meu pai.

Menino, às vezes, pensa em muitas besteiras e, como eu não era diferente dos adultos, andava matutando umas ideias meio loucas, do tipo: “e se o cara escorrega a mão na espuma e acerta um corte no meio do queixo de meu pai? E se ele fizer de propósito?” Arrepiava-me. Não faziam sentido meus pensamentos, mas, como se diz por aí, mente fazia é oficina do diabo.

Cresci acompanhando meu pai nessa rotina que gerava um custo definido no orçamento. Sempre um fim de semana do mês era reservado ao cuidado de si e de mim, geralmente ao sábado. Pendura a conta aí, Zequinha, final do ano eu pago, brincava. Era uma mixaria naquela época.

Depois que a gente cresce, estas marcas de afeto se dissolvem. Paga-se com o próprio dinheiro, escolhe-se salão, cabeleireiro, babeiro, clínica de massagem e estética. Os nomes mudam, os valores também; outros conceitos se cristalizam na memória do povo.

Mas, hoje, depois de um mês de labuta diária sem parar um pouco para descansar, sentei-me diante da TV: gripe suína, doenças contagiosas, piolhos em crianças, caspas, micose, pele limpa, bronzeada, sujeira, sabonete, condicionador, festas, gente bonita, modelos, fotos, atores... enfim, minutos depois, me senti sujo, doente, peludo, feio e mal tratado.

Dirigi-me ao banheiro e, em frente ao espelho, não me reconheci. Sem camiseta, num segundo, imaginei-me uma fonte de bactérias, um porco selvagem. Pelos no peito, unhas grandes, barba enorme, cabelos esvoaçados e duas entradas mostrando a incoerência de minha idade com a iminente calvície. Chega um tempo que não dá para disfarçar jogando um resto de cabelo para frente, e, se forem crespos, pior ainda, eles não ajudam no disfarce. Então, com essa onda de gripe suína, pensei: “Nesse situação, posso ser confundido com o transmissor primário. Tenho que dar um jeito nisso logo”.

Eu sabia que perto de casa não havia um cabeleireiro ou barbeiro sequer, e me deslocar até o centro da cidade, tendo que pegar condução, me tomaria muito tempo, e o custo seria mais alto nestas circunstâncias. Lembrei-me então de um salão situado a três quarteirões de meu apê onde uma senhora acostumava a atender sua clientela.

“Será que tem vaga pra mim?”... Se não tem tu vai tu mesmo, eu disse, avistando a inscrição em letras garrafais no toldo: SALÃO UNISSEX. Com um pé na calçada e outro na porta, preparei-me: “Boa tarde! A senhora corta cabelo de... quanto?” - Assim mesmo, com o intervalo destacando as reticências. Obviamente não era essa a pergunta, mas mudei sua estrutura sintática tentando sair pela culatra. Não ficou muito boa, mas me salvei dessa.

“Entre, meu filho. Como deseja o corte?”

Com a resposta dessa pergunta, percebi que a cabeleireira poderia estabelecer dois objetivos. Primeiro, definir o preço; segundo, induzir-me a cortar somente o cabelo, afinal ela falou em corte.

Sentei-me imediatamente frente ao espelho por onde notei duas mulheres, sentadas ao fundo olhando as minhas costas. Olharam-se! Concentrei-me inspirando e expirando como quem cumpre os comandos de um médico que nos ausculta devagar. Pouco depois, percebi que uma das mulheres era manicure, quando, num grito assustador, uma reclamou atirando um tapa na outra: “ai, vá fazer bife no açougue de sua mãe”. Senti vontade de rir, mas contive-me, afinal estava a cabeleireira com uma navalha apontando para minha orelha.

Para minha surpresa, num piscar de olhos, meus pelos estavam no chão, e as duas entradas, na testa, menos marcadas, embora minha barba estivesse intacta. Lembrei-me de meu tempo de menino e vi meu pai esperando que o barbeiro cobrisse de espuma quase o rosto inteiro à moda Papai Noel.

“Como gosta da costeleta, meu filho? Ei, tô falando com você... como gosta da costeleta? Grande, média, pequena?” – disse a senhora do salão.

Voltei-me no tempo, e respondi: “Ah, desculpa, assim está bom. Em casa, eu acerto quando for fazer a barba”. E, através do espelho, notei um senhor de meia idade entre a porta e o passeio.

“Pois não, posso ajudá-lo?”, perguntou a manicure.

“Vocês cortam cabelo de homem?”

Antes que a menina formulasse uma resposta afirmativa, a cabeleireira girou a cadeira onde eu estava sentando e, olhando nos meus olhos, perguntou: “Esse cabelo que acabo de cortar é de homem ou de mulher, meu filho?”

Respondi-lhe: “Certamente sou homem, senhora”. E ela concluiu dirigindo-se à porta: “Pergunta idiota não vale resposta”.

Fiquei confuso com essa afirmação, uma vez que eu não sabia se ela se referia à sua própria pergunta ou à daquele senhor, que já havia desaparecido do recinto. Notei um silêncio, mas logo notei a senhora voltando: “Outro dia, veio um homem todo feio, fedorento, peludo, e me pergunta: corta cabelo de homem, coroa? Não gostei desse COROA, mas respondi a ele que sim, que cortava. “E faz o serviço completo, FOFINHA? Como assim serviço completo? Claro que não! Expulsei ele do meu salão.”

Enquanto passava o espanador de penas sobre minha camiseta, disse apontando para mim com uma tesoura: “Olha pra mim e diga se tenho cara de COROA ou de FOFINHA? A gente precisa se impor. Se a gente não se impõe, meu filho, esses homens tiram a roupa aqui mesmo no meio do salão e esperam que a gente raspe tudo.”

Sem dizer-lhe uma palavra, tirei vinte reais da carteira, entreguei-lhe e dobrei a esquina.

Já em casa e em frente à TV desligada, comecei a refletir. Serviço completo, na época de meu pai, correspondia a cabelo e barba. Hoje, os conceitos mudaram de sentido ou não fazem mais sentido certos tipos de pergunta?

jr

10 comentários:

Ricardo Thadeu (Gago) disse...

É, rapaz, os tempos mudam. Sempre fiz o cabelo com um tio meu que morreu. Engraçado que, quando criança, eu queria ficar logo velho para fazer a barba com ele também.
O tal "serviço completo" mudou mesmo o sentido. Ou sempre teve este sentido, mas no vocabulário feminino.TSC.

Muito bom.
¡Hasta luego, man!

Rubervânio Rubinho Lima disse...

Olá querido irmão...


Desculpa esse farrapo véio aqui, mas tô numa fase ruim medonha, com falta de inspiração e de tino pra nada...

Adorei os textos e fazia tempo que não dava umaolhadinha nas novis...

Vai lá no CONVERSAS DO SERTÃO que ganhei um selo, e indiquei o PALATUS com um também.. vê como é o esquema das regras também..

Bernardo Guimarães disse...

é por estas e outras que jamais piso num salão: eu mesmo corto meu cabelo e uso barba desde que ela apareceu na minha frente!
abr.

Janaina Amado disse...

Oi, Nilson, vim retribuir sua visita ao blog, felizmente não silenciosa, desta vez. Que delícia de crônica esta sua, ri um bocado. E há ternura.
Abraços!

Palatus disse...

Ricardo,
Escrevi isso depois de pensar seriamente sobre o assunto e me pus a refletir acerca das daquela infância jamais repetível...obrigado pela visita. Estamos aí.

Palatus disse...

Caro Rubinho,

Que honra vê-lo por aqui novamente e mais ainda pelo prêmio. Esse momento do Palatus é histórico...agradeço pela beleza a ele atribuída.

E erga a cabeça, bola para frente e sucesso!

Abraço.
jr

Palatus disse...

Caro Guimarães,

Pois pois ...como dizem os portugas...e num é que você está certo? Experiência ímpar...

Abraço e obrigado pelas palavras.
Nilson

Palatus disse...

Janaína, a alegria é toda minha. Volte sempre. Ah, não tenho como fazer silêncio mais lá no teu blog...adoro-o!
Bjo,
jr

Caio Rudá de Oliveira disse...

Sim, sim. Os tempos mudam, conceitos mudam, nós mudamos e a certeza que fica é o preço das coisas, também do corte, sempre crescendo.

JAMES disse...

Grande Palutus, obrigado pelo comentário no meu post no "World Cartoonists!....abração e parabéns pelo trabalho!!